Comemoração de todos os fiéis defuntos
Comunhão com os que já partiram e esperança na ressurreição
O dia 2 de novembro reveste-se de um significado especial, pois é o dia em que o nosso pensamento de dirige aos nossos entes queridos que partiram deste mundo e dormem o sono da paz. Esta data está intimamente ligada à da comemoração de Todos os Santos, celebrada no dia anterior, 1º de novembro. O Missal Popular Dominical diz, na nota introdutória ao dia 2, que esta comemoração é «uma continuação lógica da festa de todos os santos». A Igreja convida-nos a honrar todos aqueles que já gozam da visão beatífica no céu, portanto os santos, canonizados ou não pela Igreja, mas também nos convida a rezar e a interceder por aqueles que, configurados a Cristo pelo batismo, ainda se encontram a purificar-se no purgatório, para que cheguem também eles à plena comunhão com o Senhor ressuscitado. A liturgia destes dois dias manifesta, deste modo, a plena comunhão entre a Igreja terrena (nós que peregrinamos ainda nesta pátria) e a Igreja celeste (inclusive aqueles que se purificam no purgatório enquanto aguardam pela contemplação do rosto de Deus!).
Já no século II, há registros de que os cristãos rezavam e celebravam a Eucaristia pelos seus defuntos. Inicialmente, no terceiro dia após o sepultamento, depois no aniversário. Mais tarde, o sétimo dia, e o primeiro mês. O ano oficial é 998, quando o Abade Odilo de Cluny (994-1048) tornou obrigatória a celebração da Eucaristia no dia 2 de novembro em todos os mosteiros sob a sua jurisdição.
Esta celebração da memória dos que já partiram, marcados pelo sinal da fé em Cristo Jesus, manifesta a nossa esperança da ressurreição, a firme certeza de que a morte é uma passagem para a verdadeira vida, a vida eterna. Portanto, «Não é um dia de luto e tristeza», mas «de esperança». Ao mesmo tempo é um momento para refletirmos sobre a transitoriedade da vida, sobre a nossa existência, a fim «aspirarmos às coisas do alto» (cf. Col 3, 1-3) e a não levarmos uma vida pequena, fútil, banal e superficial neste mundo.
O vazio que gera comunhão
Recordamos com afeto os que já partiram, recordamos a sua presença nas nossas vidas, o que eles eram e o que eles são para nós, o testemunho de fé que nos deixaram. Esta comemoração, contudo, não atravessa de forma indolor a nossa vida; ela nos coloca perante o vazio causado pela ausência das pessoas amadas: pais, cônjuges, filhos, irmãos, amigos. A memória dos nossos entes queridos é obscurecida pelas lágrimas: chorar faz parte da vida. Até Jesus chorou no túmulo de seu amigo Lázaro: «Ao vê-la [Marta] a chorar e os judeus que a acompanhavam a chorar também, Jesus suspirou profundamente e comoveu-se. […] Então Jesus começou a chorar» (cf. Jo 11, 33-35). Dietrich Bonhoeffer escreveu na prisão: «Nada pode substituir a ausência de uma pessoa amada; não há esforço a ser feito, apenas perseverar e suportar; isto pode parecer muito difícil à primeira vista, mas é ao mesmo tempo um grande consolo, porque, enquanto o vazio permanece aberto, permanecemos ligados uns aos outros por meio desse mesmo vazio. É falso dizer que Deus preenche o vazio; Ele não o preenche de forma alguma, mas o mantém expressamente aberto, ajudando-nos assim a preservar nossa antiga comunhão recíproca, mesmo na dor». E a dor sofrida nos coloca frente a frente com a realidade da morte, de toda morte, até mesmo da nossa. Gostaríamos de afastá-la, enquanto, em vez disso, ela se torna uma companheira de vida.
A morte, não obstante toda a explicação científica, continua sendo um grande mistério, sobretudo quando procuramos entender o porquê da sua existência. Para o cristão, que não busca entender a morte do ponto de vista da ciência, a morte continua sendo um grande enigma. O que o cristão sabe sobre a morte? A pergunta nos deixa pensativos e perturbados. Certamente, o cristão sabe o que todos sabem: «A morte é uma passagem dolorosa e aniquiladora. […] É a maior violência que nos pode ser feita; uma derrota, um revés sem remédio, uma profunda contradição daquilo que somos chamados a ser e a viver. Algo que vem de fora, e não exatamente da vontade de Deus. Deus é o Senhor da vida: a morte não é sua, não lhe pertence, não tem origem nele» (S. Corradino).
Não fomos criados para a morte, embora ela – como às vezes se diz – seja a única certeza da vida. No entanto, do nosso coração brota um poderoso desejo de permanência, de felicidade, de comunhão, de amor e de infinito. Fomos feitos para a vida e profundamente convencidos de que os valores da vida são fortes o suficiente para durar para sempre.
Deus não criou a morte
A Revelação, embora verdadeiramente sóbria sobre este assunto e de forma alguma induza a fantasias de qualquer tipo, confirma isso. No final do primeiro século a.C., o Livro da Sabedoria proclama: «Deus não é o autor da morte nem se compraz com a destruição dos vivos. Pois Ele tudo criou para a existência. Deus criou o homem para a incorruptibilidade fê-lo à imagem do seu próprio ser. Por inveja do diabo é que a morte entrou no mundo, e hão-de prová-la os que pertencem ao diabo» (Sb 1, 13-14; 2, 23-24). O texto alude à história da desobediência do homem no início da Bíblia: um evento ao qual os autores sagrados não retornaram, exceto no Livro da Sabedoria, pouco antes da vinda do Senhor. Com tons absolutamente novos, afirma-se que o homem não foi feito para morrer; no entanto, há uma ligação imediata entre a morte, o pecado e o demoníaco. Em uma história originalmente orientada para o bem e a luz, algo sombrio aconteceu que modificou o plano de Deus para a humanidade. Consequentemente, a morte não pode vir de Deus porque Deus é o Deus da vida.
Santo Ambrósio, na sua reflexão sobre a morte corporal, afirma que «a morte não fazia parte da natureza» e que «Deus não instituiu a morte ao princípio, mas deu-a como remédio». A seguir ao pecado a vida o ser humano tornou-se um fardo pesado, insuportável e miserável e «Deus teve de pôr fim a estes males, para que a morte restituísse o que a vida tinha perdido. Com efeito, a imortalidade seria mais penosa que benéfica, se não fosse promovida pela graça». Em sintonia com São Paulo, também santo Ambrósio considerava a morte como ‘lucro’ em função da vida plena que só Jesus pode dar porque Ele é a «Vida»: «para mim, viver é Cristo e morrer, um lucro» (Fil 1, 21).
Um Amor nos espera
Diante de tamanha desolação, o homem é chamado a questionar-se sobre o sentido da vida e, ao mesmo tempo, sobre o sentido do fim. O crente, embora iluminado pela esperança da ressurreição, desconhece o que o espera depois de ter atravessado o limiar da vida após a morte. Depois da morte tudo é «surpresa». Uma única certeza o sustenta, expressa com grande eficácia por são João da Cruz: «O que acontecerá do outro lado quando para mim tudo estiver voltado para a eternidade, eu não sei. Eu creio; eu só creio que um Amor me espera. Eu só sei que então, pobre e sem fardos, terei que fazer um balanço da minha vida. Mas não desespero, porque creio, eu realmente creio que um Amor me espera» [3]. A fé neste Amor não pode deixar de orientar a nossa vida para o amor, para o seguimento de Jesus, que viveu no amor e enfrentou a morte por amor.
A morte nos assusta e nos mete medo. É humano! Medo por causa do desconhecido. Medo por causa da consciência de que seremos julgados. São Paulo referindo-se à ressurreição dos mortos, diz que «o último inimigo a ser destruído será a morte, pois Deus tudo submeteu debaixo dos seus pés» (1 Cor 15, 26.27). São Francisco de Assis entendeu isto, deixou de olhar para morte como inimiga invencível, deixou de temê-la. Passando por muitos sofrimentos e antevendo iminente a sua hora, ele se reconcilia com a morte, chamando-a de irmã. Aquele que «combateu o bom combate e guardou a fé» (cf. 2 Tim 4, 6) já não tem medo da morte, abandona-se serenamente à misericórdia de Deus, Senhor da vida, justo juiz, na esperança da «coroa da justiça».
Entrar na Vida
Para entrar na vida que o Senhor nos dá, precisamos experimentar o “morrer”: como Jesus e com Jesus. Ele compartilha o nosso destino e morre como nós, ainda que a sua morte seja diferente: para nós, é a consequência da nossa ‘criaturalidade’ e do pecado, mas para Ele, é um «entregar-se» (Gl 2, 20; Ef 5, 2), um «doar-se» para a nossa salvação (cf. Jo 19,30). Para que nenhum daqueles que o Pai lhe confiou se perca, e para que Ele os ressuscite no último dia (cf. Jo 6, 39).
Nesta perspetiva, a Igreja nos convida a rezar pelos defuntos. Em cada celebração da Missa, a Igreja invoca o perdão divino por «todos os nossos irmãos que morreram na esperança da ressurreição, e de todos aqueles que na vossa misericórdia partiram deste mundo, admiti-os na luz da vossa presença» (Oração Eucarística II). A Igreja, através do sacramento da Eucaristia, recorda, além daqueles por quem a Missa é oferecida, todos os defuntos cuja fé só o Senhor conheceu. Desta forma, somos convidados a rezar pelos nossos entes queridos e por aqueles em quem ninguém pensa ou por quem ninguém reza.
A comunhão com os defuntos e os ritos fúnebres nos remetem aos tempos pré-históricos: o homem honrava os seus entes queridos com o culto aos mortos e buscava contato com eles. Mesmo no Antigo Testamento, atos de adoração manifestam a dor dos vivos (cf. 2 Sm 3, 31-33), documentam o rito do sepultamento (cf. 1 Sm 31, 12-13; Tb 2, 4-8) e o cuidado com os túmulos (cf. Gn 23; 49, 29-31); não receber o sepultamento é uma maldição (cf. Dt 21, 23; Tb 2, 4; Jr 16, 4).
Veremos a face de Deus
Vários textos do Antigo Testamento fundamentam a esperança de ver Deus após a morte. A primeira indicação está no martírio dos sete irmãos macabeus que proclamam a ressurreição diante de seus algozes, condenados por se recusarem a comer carnes proibidas: «Ó malvado, tu arrebatas-nos a vida presente, mas o rei do universo há-de ressuscitar-nos para a vida eterna, se morrermos fiéis às suas leis» (2 Mac 7, 9; cf. 2 Mac 7, 11.14.23.36 e Dn 12, 2-3). Ao mesmo tempo, Judas Macabeu oferece um sacrifício pelos mortos, para que os seus pecados sejam perdoados (cf. 2 Mac 12, 45). Ele inaugura assim a oração pelos falecidos, a intercessão pelos nossos entes queridos, uma comunhão que nos une a eles e a Deus.
O Novo Testamento afirma que o encontro com Deus traz consigo um juízo final sobre o indivíduo e sobre a história, onde o juiz é Jesus e a norma de julgamento é o relacionamento pessoal com Ele. Na parábola do juízo, no Evangelho de Mateus, o Senhor declara: «Sempre que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes» (Mt 25, 40). Trata-se dos famintos, os sedentos, os excluídos, os doentes, os presos, os necessitados de ajuda: cada “pequeno irmão” representa o rosto do Senhor.
Com Cristo viveremos
Como cristãos rezamos, na Eucaristia e também na oração do Ave Maria, para que a hora da nossa morte nos encontre prontos para receber o perdão divino e acolher o amor d’Aquele que se fez homem para nos salvar e morreu e ressuscitou por nós. A palavra final da vida e da nossa história, portanto, não é a morte, mas uma nova existência, como ressuscitados, em comunhão com o Senhor Jesus: «Se morremos com Cristo, acreditamos que também com Ele viveremos» (Rom 6, 8)
Fontes: Liturgia das Horas, Missal Popular, Vaticannews.va e laciviltacattolica.it